domingo, 7 de março de 2010

O Tico



Tenho um amigo mais velho. Muito, muito mais velho. São quatro anos. Quatro anos que devem ter durado seis mil dias cada um. Desde bem pequeno ele sempre cuidou de mim. Quando eu saia correndo pelo shopping ou na praia ele logo olhava na cara despreocupada da minha mãe e falava “Tia, olha bem essa menina”. Pouco tempo depois brigávamos o dia inteiro dentro de casa mas na rua ninguém me encostava o dedo, nem as garotas maiores. Todos sabiam que se meu amigo visse alguém me fazendo algum mal era briga braba na certa. Já com os garotos ele nunca me ajudou não, pelo contrário. Para os garotos de dezesseis anos uma menina de treze e meio é um feto. Eles só tinham olhos para aquelas garotas charmosas e sérias do ginásio. Mas no fundo eu não achava tão ruim, me restavam os de quatorze.

Minha mãe sempre me comprava roupas, mas eu estranhamente gostava e só usava umas já meio gastas, algumas até com certos rasgados, que na minha opinião eram o charme daquela calça ou bermuda jeans. Até hoje não sei se gostava das roupas por serem gastas ou por terem sido herdadas dele.

É bem verdade que não entendi muito quando vi a mãe dele chorando naquele aeroporto. Preocupação acho que não era, o Tico saberia se virar muito bem em outro país, afinal de contas ele já era um homem a muito tempo. Lá ia ele, entrando na sala de embarque, um pouco de barba e muito medo na cara, pela primeira vez eu via medo no rosto daquele homem de 17 anos. Passado poucos messes eu entendi o porque das lagrimas da "tia". Era essa tal saudade, coisa que eu não conhecia até então. Ele não sei, mas essa tal viagem me fez crescer pra caramba. Nada de folgar com garotos mais velhos, viajar sozinha pra casa da vovó, não gritar mais o nome dele quando o computador dava pau, ninguém pra me explicar os filmes com legendas rápidas de mais e ninguém pra me explicar que papai e mamãe não nasceram casados e que poderiam se separar um dia... Os garotos? Continuaram não me dando bola. Até que um dia aquele ano acabou e meu amigo voltou.

Meu amigo havia voltado, e voltou sem medo. Deve ter jogado a tremedeira das pernas em algum lugar do oceano. Mas ele nunca mais me explicou os filmes nem fomos mandados juntos à casa da vovó.

Hoje, alguns anos depois, nos vemos muito pouco, ele foi morar em outro estado por causa do trabalho. Tenho uma afilhada filha dele, de um ano. Ela é responsável pelos poucos sorrisos que lembro de ter visto no rosto daquele homem que tanto amo. Ele está quase sempre muito sério ou com um sorriso amarelo, de nervoso, em situações tensas de trabalho ou encontro com familiares distantes. Quando nos vemos eu falo das minhas vivências e ele de seus negócios. Falamos um pouco de nossos pais e muito de nossos amigos. Algumas coisas nunca mudaram.

Na última visita que ele me fez, estávamos no quarto eu, ele e minha afilhada. Estávamos todos felizes. Ele colocou uma música do Cocoricó e eu comecei a pular e dançar. Ele batia palmas animado e a pequena mexia as pernas gorduchas e sorria. Pulamos até ficar suados. Meu amigo sorria como eu não via desde quando vimos da janela a gorda do 506 do bloco 2 trocando de roupa. A menina ouviu algum barulho na sala e saiu. Quando ele se deu conta que estávamos só nós dois, adultos, cantando “Cocoricó” se recompôs rapidamente, colocou a cabeça pra fora do quarto e gritou “Vem filha, a dinda está dançando pra você”.

O que ele não sabia é que eu estava dançando era pra ele.

Hoje ainda não entendo direito os filmes com legendas rápidas, fico dias sem computador quando ele dá pau e no fundo, no fundo ainda acho que meus pais nunca vão se separar.

Naquele pequeno instante em que olhávamos um nos olhos do outro e cantávamos bem alto “CO-CO-CO-RI-CÓ” eu realmente achei que meu "velho amigo mais velho" havia voltado...

Mas esse tipo de coisa não volta.

Um comentário:

  1. Bonito sentimento em bonitas palavras, Jaque. Eu que gosto do jeito que você escreve. Tem toda uma poesia envolvida. hahahah. Beijo, gênio. :)

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